Tuas barbas caídas sobre o peito

Tuas barbas caídas sobre o peito,
Amareladas de sujo e abandono,
Cheias de não sei que sabedoria ou ignorância profunda,
Fazem-me quase desejar o teu reino.
Que leve andas tu: três sacos cheios de tralha,
A tua tralha, não a tua vida.
A tralha de alguns torna-se a vida deles,
Mas a tua é só para ir andando,
Para o mínimo conforto na tua passagem.
Que leve andas! Quão leve anda,
Quão livre é quem nada tem!
Tudo o que tens são esses três sacos
E esse é o teu peso.
O teu olhar nas pessoas que passam...
Olhas como quem olha a corrente de um rio,
A corrente dá-me calma,
Tu dás-me calma
E ensinas-me, sem nada dizeres, o verdadeiro valor
Disto que estou a usar.
Por vezes esqueço-me...
Por vezes perco-me em coisas fúteis,
Em ideias falsas e mundos postiços.
Aí abandonado pela sociedade,
És mais tu do que os que passam.
Deles só queres uns metais para comer,
Porque estás numa cidade,
Porque os homens estão a tornar tudo numa cidade
O que dificulta a liberdade, a tua liberdade...
O que sonhas, o que desejas, o que ambicionas?
Sentir a relva fresca, o teu peso nos músculos,
Cores que passam, se mexem, pessoas, pombas,
O ruído dos carros que passam, das vozes que se atropelam...
A teu mundo és tu e três sacos
E isso torna o teu olhar leve, despreocupado, livre.
Não tens o ar carregado de quem tem que fazer isto,
Para ganhar aquilo, para comprar aquela outra coisa.
Não temes perder o que tens, porque é tão pouco,
Quase nada. Não temes porque só te tens a ti
E aos teus sentidos e à tua vida... e sabes isso.
Esquecemo-nos que só nos temos a nós,
Aos nossos sentidos, à nossa vida...
Se falasses e pregasses a tua doutrina do nada,
Do tudo, do essencial, da vida...
Saltar para o vazio dá uma descarga de frescura,
De liberdade que nos explode no peito,
Nos limpa a alma de porcarias e coisas importantes,
Torna-nos puros e cheios de vida, porque só essa importa.
Era um vez um homem que não tinha nada
E era o mais rico de todos os homens da grande cidade!
06-03-06
João Bosco da Silva

“Preparem os fatos”

Um dia depois da folia, o merecido descanso observa-se pela ausência dos principais actores da grande noite de natal (vulgo “ciganada”). Mas esta história começa a ser preparada com muitos dias de antecedência e impaciência. A espera deste dia, desculpem-me os religiosos e crentes, não se prende com o espírito natalício, um tempo de paz, caridade, solidariedade, e todo o sentimento de amor ao próximo. Natal é para as crianças!!!!. Para a maioria, e espero não estar enganado, o natal, por estes lados, é mais um dia, apenas mais um, mas a noite (ahh! A noite…) essa sim, vale a pena esperar o resto do ano. Sentimentos à parte, a ansiedade desse dia corre nas veias dos “teenagers” até aos mais graúdos. A 30 dias da grande noite comenta-se: já só falta um mês!!!!, estamos quase lá!!, este ano é que vai ser!!!.
Devo esta
r a fazer-me entender. Aqueles que o comentam, aqueles que o vivem, nem precisavam de prenunciar qualquer palavra. O simples esfregar de mãos, o brilho no olhar reflecte a proximidade do evento. Alguém dizia “preparem os fatos”. Não, não é o de cerimónia da missa do galo ou da bênção do pão. É um muito mais divertido e de maior destaque. São as vestes dignas da melhor apresentação possível para a bendita noite.
Todos sentem esta festa, mesmo os que estão longe. Aliás, esse é um dos motivos pelo qual regressam à terrinha por essa data. A questão é que remetem “a coisa” para questões familiares…ah e tal, passar as festas com a família…tem de ser!!. Digam lá a verdade…vamos até lá porque há de facto a loucura, o exagero, a desgraça de uns quantos incontáveis copos de vinho, gargalos de cerveja, uns “tiros” para alguns de levar o “caixão à cova”. Esse sim é o verdadeiro motivo. Claro que se aproveita..a família estar presente, mas torna-se evidente que passam a segundo plano. De todas as festas esta é “ a festa rija”. Apesar das condições climatéricas, os corpos são lançados ao relento, à chuva e ao vento, mas eles deambulam pelas ruas estreitas, agarrados a um qualquer dispositivo emissor de barulho e entoam versos quase imperceptíveis mas sempre hilariantes. Deve ser com certeza os efeitos colaterais da bebida. Mas quem está atento? Quem vai reclamar? Pode aparecer um ou outro mas esses são os que estão dentro de casa e que esperam que a comitiva lhes atire uma alcunha bem merecida mas por poucos bem recebida - também por estas bandas assenta como uma luva o “velho do Restelo”-.
A romaria continua mas a história já todos a conhecem. Pelo menos é a única que ecoa pelos comentários de quem a visita e a sente.


Nelson Paçó

Lançamento do 2º número d' A Torre

Imagens brevemente disponíveis.
Conteúdos online no site
http://atorre.com.sapo.pt